31 de março de 2009

Abre as asas sobre nós

Rédeas, cabresto, bitola. A imagem de um cavalo ou burro submetido, tão duramente, à vontade alheia remete mesmo ao conceito de liberdade. Ou melhor, de sua ausência, de sua castração. Se o peito dói de piedade ao se vislumbrar um desses animais, de vontade tão subjugada, que dirá sentir o golpe do chicote nas próprias costas, seja qual for o elemento controlador na cela? Sentir-se passivo, bitolado, boneco de ventríloquo, privado do direito de ir, vir, voltar e virar não parece digno nem aos espíritos mais inertes. Não se trata de aceitar sugestões, seguir conselhos, atender a pedidos, obedecer ordens convencionais - atitudes naturais de uma disciplina necessária e de uma organização benéfica. O que fere é o açoite de não poder ser, estar, permanecer ou exercer outros verbos de ligação. E não se sabe quão magnífico é ser livre até que se experimente da privação de autonomia. Não é possível optar, decidir quando e como, nem ir onde se quer. Seja assim e assado; isso é certo e aquilo, errado; faça agora e não depois; se não agir assim, serás mau.
Cavalos não reclamam. Burros aceitam, resignados, a carga. Devem comer capim, usar ferraduras, carregar fardos, seguir comandos e atender ao direcionamento imposto. Devem também eles sonhar com as asas de Pégasus adentrando esferas celestiais as mais belas. Devem sentir o sabor das nuvens e da crina sem amarras.
Liberdade não precisa ser voo irresponsável, mas galopes ritmados ao gosto do vento. E todo aquele que priva um ser de ser desconhece a dor de querer, mas não poder.

25 de março de 2009

Versos canhotos


Pedem-me versos
Melodia, rima, métrica
Ou qualquer leitura rica
De emoções que a prosa não sabe explicar

Pedem-me versos
Amores de Florbela
Rainhas de Neruda
Dores de Pessoa
Como se a eles pudesse chegar
Sem o merecimento do sublime

Pedem-me versos
Daqueles que engasgam ou dão soluços
Dos de fazer doer
Ou dos de cessar

Mas, finda a dor, onde achar inspiração?
Se a vida e seu "não" é que faz verter palavras
Se quem dá emoção ao papel é a desgraça
O não ter, o conter, o implodir
O deixar fluir vazios que mantêm o peito cheio?

Peçam-me versos
E não percebam o papel borrado
Ou o que nele esteja estampado
Que nem é dor nem fim do túnel
Parece apenas o infortúnio
De música sem clave de sol
De amar sem rima e sem dó

Perdoem-me os versos
Os que ensaiei e os que não fiz
Pois versar é desatar nós
E para seguir em frente
Às vezes é prudente atar firme
Aqueles laços acetinados
Barbantes cintilantes de sentimento inconfesso
De orações escondidas
Das paixões proibidas
Pelo pecado que é ver poesia
Onde só deveria haver prosa

22 de março de 2009

Espanca e não cansa


Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!


E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!

Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… Deixa-os tombar

(F.E)

19 de março de 2009

A verdade sobre os homens


Quanto mais a gente acha que entende da personalidade (???) masculina, mais se surpreende com a capacidade deles de surpreender, mesmo no óbvio e ridiculamente previsível contexto do seu mundinho. Pensava exatamente assim em 2003, quando, numa produtora de amigos, assisti ao curta Na cama com King, que mudou a minha vida, por revelar, de uma vez por todas, o que almejam as pessoas de cueca. Seis anos depois, a coisa não mudou muito. A grande revelação de King continua inquebrantável. Tanto que me deu a sensação de marasmo, estagnação, falta de novidade na turma pouco criativa do sexo oposto. E eis que o filme de King apareceu, de novo, de supetão, no meu caminho. Assistam ao Rei, desvendem o segredo de los hombres e ingressem no "Kung-fu comunista"!

15 de março de 2009

Spending my time


What's the time? Além de Roxette, muitos já fizeram tal pergunta. Mas, afora o seu sentido literal, pode-se divagar sobre o tempo presente, aquele hoje sobre o qual dá até medo de falar por não termos segurança do que significa. Passamos boa parte da vida concentrados no futuro e obcecados pelo passado. Basta analisarmos o nosso dia. No desjejum da segunda-feira, já estamos neuróticos a planejar o almoço, os pagamentos e os compromissos da semana. O tempo não catatônico que sobra, geralmente nos minutos antes de adormecer, é dedicado às lembranças dos dias (ou meses, anos, encarnações!) anteriores e suas sequelas tatuadas na nossa mente subestimada. Durante reflexões existenciais, atemo-nos ao "de onde viemos?" e "para onde vamos?", uma vez que o "quem somos?" parece absurdamente desagradável de exercitar, não se sabe bem por quê. Se ensaiamos alguma coragem para fazê-lo, logo surge a grande idéia de assistir a um filme, voltar ao livro sem fim da cabeceira ou escrever um post inútil no blog. Como nos organizar para atingirmos aquela felicidade tão natural quanto picolé de tuti-fruti que nos apontam os best-sellers pós-modernos cifrônicos e alienantes (para reconhecê-los, observe se o título traz palavras como queijo, inteligência emocional, enriquecer, pro-ativo...)? Fácil nos transpormos para o futuro ideal das miragens consumistas ou românticas...até lembrarmos o nosso passado, o que não fizemos e os feitos errados. O banzo do hoje chega de novo. O tédio de nos constatarmos automatizados por recordações lobotômicas que já nem sabemos se foram reais e também por vislumbres de um futuro nervoso, ansioso, quase esquizofrênico da satisfação plena dos nossos desejos de agora. E agora? O que fizemos dele? Dispendemos o mesmo esforço para vivermos bem nossos dias? Levantar mais cedo, preparar um café-da-manhã especial, depois de observar o céu azul-gritante do terraço, usar o sabonete importado no banho demorado, produzir-se com o melhor do guarda-roupa, ir de táxi, pôr em prática idéias outrora vagas no trabalho e pregar uma figura de Klimt na repartição. Completar as palavras cruzadas enquanto espera a vez no consultório médico, de onde se sai direto para fazer os exames solicitados, que, dessa vez, não vão perder a validade da requisição. Na volta para casa, jogar-se no chão com as crianças para uma sessão de arte na cozinha, onde farão biscoitos, com direito a sujar roupa e mesa. Antes do sono, escrever aquelas linhas pendentes, telefonar para os amigos esquecidos e esmagados pela nossa ânsia por amanhãs que nunca chegam. Outro banho perfumado, um filme intrigante, ler Neruda ou Espanca com taça de vinho e castanhas. E a única preocupação, ao dormir, será a de como os lençóis novos parecem confortáveis. Nesse exercício de aqui-agora, nosso tempo é hoje. E também a nossa perda contemporânea será a de cada dia. Agarrar já as oportunidades que poderiam ficar para o superlotado amanhã. Comer a cereja primeiro. Permitir-se o desfrute destinado a um tão longe e arriscadamente inexistente fim de semana. Desligar a tecla Remember. Sentir-se ato e não plano. Talvez aprendamos a conjugar o tempo presente por um método mais leve do que o do arrependimento futuro daquilo que não se fez no passado por atropelamento do hoje.

12 de março de 2009

Está escrito?


"Maktub", "Está escrito", gritam hindus, astrólogos, leitores de Paulo Coelho e demais compactuantes da crença no destino. Não haveria coincidências, acaso, acidentes. Fatos e emoções estariam todos registrados num livro previamente escrito pela Providência ou algo transcedental a esta esfera terrestre. Os que crêem no destino são inegavelmente confiantes, portadores de fé inabalável, de um brilho nos olhos latente e invejável serenidade. Por outro lado, o excesso de certeza nas cartas marcadas do Jogo da Vida pode levar ao fanatismo ou à inércia para transformar, evoluir. Acreditar no acaso seria talvez o avesso do sentimento dos destinistas. Acaso é para os que nutrem interesse pela aventura de viver sem rédeas predestinadas, responsabilidades assumidas ou culpas. Materialistas, desapegados ou simplesmente amantes da coragem de mudar e interferir no futuro, ignorando o peso das circunstâncias. Afinal, o livro dos dias já vem publicado ou nos oferece páginas em branco? Somos meros personagens obedientes do roteiro da Providência ou senhores da vida expostos às surpresas e aos imprevistos da Sorte? Frente à incoveniente dúvida filosófica - responsável por boas crises existenciais -, talvez caiba um meio-termo. E chamam-no livre-arbítrio. Confia-se nas linhas traçadas pelo Alto, embora se tenha certeza de que a própria mão ajudou a escrevê-las, dando plenas liberdade e responsabilidade sobre o que se faz, mesmo nas mais inocentes curiosidades da vida. Espiritualistas, reencarnacionistas, filósofos pós-modernos ousam assumir o lápis em punho. E nós? Lemos e dizemos amém; rabiscamos as folhas brancas ao nosso bel prazer ou assinamos embaixo? Se, por acaso, acreditar em destino, esteja livre para arbitrar e optar.

8 de março de 2009

O que é isso, companheira?


É certo que ninguém escapa da lei da evolução; nem as portadoras do pecado original, que já sofreram um bocadinho até se descobrirem gente. Pois que hoje, Dia Internacional da Mulher, me apercebo dessa minúscula subida no degrau da maturidade. E não por nos considerar superiores aos homens, senhoras da razão e detentoras do poder. O bom é justamente sacar que somos equivalentes, complementares e singulares, o que nos deixa na segura condição de sorrir e agradecer os parabéns por uma data como esta (em vez de se armar e atirar algo como: "todo dia é dia da mulher!"). Não, não lavo cuecas que não sejam do meu filho (que vai aprender a fazer sozinho em breve, claro). Mas não vejo mal em preparar uma comidinha, ajeitar a gravata ou encher a tulipa durante o futebol domingueiro. Acho dignas coisinhas de mulher mesmo, fofoquinha, creminho, sensibilidade, medo de sapo, revista da Natura, dívidas por causa de roupas. Também não admiramos vê-los cuidando da barba, lavando o carro, abrindo para nós a porta e matando a barata? Para ir mais longe: a culpa das besteiras que falam sobre as mulheres é da mulher. E mais: machismo é coisa de mulher. Pior do que os trogloditas que nos subestimam são as danadas que desonram a classe. Amélias, Helenas, loiras-burras, periguetes, marias-gasolinas, sacos-de-pancada, cascavéis, cachorras, golpistas...os rótulos ajudam a ilustrar. E, se a gente fala tão mal dos homens e suas cretinices, por que não reconhecer as frutas podres no nosso pomar e levantar a bandeira da mulher de verdade (mané Amélia!)? Entrar para o movimento, invadir latifúndio, pegar na enxada e erguer a foice contra a falta de feminilidade das fêmeas! Fofoqueiras te contando os podres de uma companheira de luta? Chama de mal amada e manda passar direto! Esposa se queixando do marido opressor? Recomenda um novo sabão em pó, já que ela parece desconhecer a palavra divórcio. Uma perua bêbada na festinha com despeito e desrespeito (e falso peito!) para com as semelhantes na fila do xixi? Deixa entrar no banheiro químico e dá uma sacudida - a turbulência pode colocar os neurônios para funcionar! Armar-se de orgulho contra os homens é fácil e corriqueiro, mas uma estratégia burra. Ser mulher é saber aproveitar a sensibilidade e o jeitinho delicado para lidar com os mesmos problemas e bombas por que passam os homens e sem estragar o esmalte. É aceitar que a força do nosso sexo está justamente no poder de exercer a fragilidade para garantir a firmeza do nosso caráter e a fortaleza do nosso coração. Sin perder la ternura jamás!

3 de março de 2009

Azul


Azul é ver céu sem nuvem, mar sem sargaço, estrada sem buraco, ponto sem nó. Azul é esperar sem ansiar, nadar e respirar, chegar sem voltar. Azul é vermelho na boca, cintilante nos olhos e dourado no peito. Fechar os olhos e ver azul...e nele mergulhar, sem medo de misturar e virar verde, diluir e ficar claro, borrar e ser feio. Se viver pode (e deve) ser colorido, escolher o azul é trazer pros olhos partículas turquesas de céu e pra alma um tanto de emoções anis.